Em 1991, um professor norueguês publicou um romance que contribuiu para a divulgação da filosofia entre os estudantes dos ensinos fundamental e médio. Seu nome é Jostein Gaarder, e o romance que ele publicou é este aí ao lado, O mundo de Sofia. Ao mesmo tempo em que a estória da protagonista, Sofia Amundsen, se desenrola, somos levados a percorrer, ao lado desta garota de 15 anos, os mais de vinte séculos da história da filosofia, dos pré-socráticos aos filósofos contemporâneos. Neste marcador do blog, postarei algumas das misteriosas cartas que Sofia recebe ao longo do romance, sempre que estas tiverem alguma ligação com a temática que trabalharmos em sala. Lembro-lhes que esta NÃO é uma leitura obrigatória, fica a critério e interesse de vocês a opção por ela. Para quem se interessar, este livro pode ser o primeiro passo para uma compreensão mais geral de toda a história da filosofia.
Na carta que reproduzirei a seguir, há um trecho que gostaria de destacar de antemão: "Segundo um filósofo grego que viveu há mais de dois mil anos, a filosofia surgiu da capacidade que os homens têm de se surpreender". Este filósofo foi Aristóteles, e é realmente possível que a sua frase, escrita há mais de dois mil anos, valha ainda hoje como uma verdade incontestável. Quem tem contato com crianças pequenas (irmãos, primos, sobrinhos...) convive todo o dia com a grande curiosidade desses pequenos filósofos: o que é o nada? por que às vezes o tempo passa rápido e outras vezes demora a passar? o que acontece quando a gente morre? o que é a morte?
Quem nunca se viu encurralado por essa idade dos porquês? Filosofar não é mais nada além disso: manter a curiosidade de criança mesmo quando somos adultos. É não aceitar sem pensar o que a televisão nos diz, o que os jornais nos dizem, o que a internet nos diz, o que os livros nos dizem! É questionar a tudo e a todos (com a devida educação, é claro), até a nós mesmos, por mais que de vez em quando isso não seja lá muito confortável. Quem nos garante que tudo aquilo em que sempre acreditamos esteja certo? É preciso ser criança para ter curiosidade, e é preciso muita coragem para continuar com ela. Não consigo pensar em ninguém melhor para isso que vocês, eletro-jovens-bagunceiros-falantes-animados!! Vamos lá, não deixem esse mundo caducar...
Primeira carta: O QUE É A FILOSOFIA?
“Cara Sofia! Há muitas pessoas que têm diversos “hobbys”. Algumas colecionam moedas antigas ou selos, outras fazem trabalhos manuais, outras ainda dedicam quase todo o tempo livre a uma modalidade esportiva.
Muitos gostam de ler. Mas aquilo que lemos pode variar muito. Há quem leia apenas jornais ou revista em quadrinhos, outros gostam de romances, outros ainda preferem livros sobre os mais variados temas como a astronomia, a vida selvagem ou as descobertas técnicas.
Se estou interessado em cavalos ou pedras preciosas, não posso exigir que todos os outros partilhem deste interesse. Se me sento em frente à televisão encantado com todos os programas esportivos, tenho de aceitar que outros possam achar o esporte aborrecido.
Haverá alguma coisa que interesse a todo mundo?
Haverá alguma coisa que diga respeito a todas as pessoas, independentemente do que são e do lugar do mundo onde vivem? Sim, cara Sofia, há questões que dizem respeito a todos os homens. E neste curso trata-se precisamente dessas questões.
Qual a coisa mais importante na vida? Se o perguntarmos a alguém num país com o problema da fome, a resposta é: a comida. Se pusermos esta questão a alguém que esteja com frio, nesse caso a resposta é: o calor. E se perguntarmos a uma pessoa que se sinta muito sozinha a resposta será certamente: a companhia de outras pessoas.
Mas admitindo que todas estas necessidades estão satisfeitas — será que resta alguma coisa de que todos os homens precisam? Os filósofos acham que sim.
Segundo eles, o homem não vive apenas do pão. É evidente que todos os homens precisam comer. Todos precisam de amor e de atenção, mas há algo mais de que todos os homens precisam. Precisamos descobrir quem somos e porque é que vivemos. Interessarmo-nos pela razão da nossa existência não é um interesse ocasional, como o interesse em colecionar selos.
Quem se interessa por tais problemas, preocupa-se com tudo aquilo que os homens discutem desde que apareceram neste planeta. A questão acerca da origem do universo, do globo terrestre e da vida é mais vasta e mais importante do que saber quem ganhou mais medalhas de ouro nos últimos Jogos Olímpicos.
A melhor maneira de nos iniciarmos na filosofia é colocar perguntas filosóficas:
Como se formou o mundo? Haverá uma vontade ou um sentido por detrás daquilo que acontece? Haverá vida depois da morte? Como podemos encontrar resposta para estas perguntas? E, acima de tudo, como deveríamos viver? Estas perguntas foram colocadas desde sempre pelos homens. Não conhecemos nenhuma cultura que não tenha perguntado quem são os homens e de onde vem o mundo. As perguntas filosóficas que podemos colocar não são muitas mais. Já colocamos algumas das mais importantes.
A história oferece-nos muitas respostas diferentes para cada uma destas perguntas.
Por isso, é mais fácil formular perguntas filosóficas do que encontrar a sua resposta.
Mesmo hoje, cada um deve encontrar as suas respostas para estas perguntas. Não podemos saber se Deus existe ou se há vida depois da morte, consultando a enciclopédia. A enciclopédia não nos diz como devemos viver. Mas ler o que outros homens pensaram pode, no entanto, ser uma ajuda, se quisermos formar a nossa própria concepção da vida e do mundo.
A busca da verdade pelos filósofos pode ser talvez comparada a um romance policial. Alguns pensam que Andersen é o assassino, outros pensam que é Nielsen ou Jepsen. Talvez o verdadeiro mistério deste crime possa ser um dia esclarecido subitamente pela polícia. Podemos também pensar que a polícia nunca conseguirá resolver o enigma. Mas este tem, no entanto, uma solução.
Mesmo quando é difícil responder a uma pergunta, é possível imaginar que a pergunta possa ter uma — e apenas uma — resposta correta.
Ou há uma forma de vida após a morte ou não.
Muitos enigmas antigos foram, entretanto, resolvidos pela ciência. Outrora, o aspecto da face oculta da Lua era um grande mistério. Não se podia descobrir a resposta através da discussão, e assim era deixada à imaginação de cada um. Mas hoje em dia sabemos exatamente qual é o aspecto da face oculta da Lua. Já não podemos acreditar que haja um homem vivendo na lua, ou que ela seja um queijo.
Segundo um filósofo grego que viveu há mais de dois mil anos, a filosofia surgiu da capacidade que os homens têm de se surpreender. O homem acha tão estranho viver, que as perguntas filosóficas surgem por si mesmas.
Pensa no que sucede quando observamos um truque de magia: não conseguimos perceber como é possível aquilo que estamos a ver. E perguntamo-nos: como é que o ilusionista conseguiu transformar dois lenços brancos de seda num coelho vivo?
Para muitos homens, o mundo parece tão inexplicável como o coelho que um ilusionista retira subitamente de uma cartola até então vazia.
No que diz respeito ao coelho, percebemos claramente que o ilusionista nos enganou. O que pretendemos descobrir é como nos enganou.
Quando falamos sobre o mundo, a situação é diferente. Sabemos que o mundo não é pura mentira, uma vez que nós estamos na Terra e somos uma parte do universo. Na verdade, somos o coelho branco que é retirado da cartola. A diferença entre nós e o coelho branco é apenas o fato de o coelho não saber que participa num truque de magia. Conosco passa-se de modo diferente. Sentimos que tomamos parte em algo misterioso, e gostaríamos de esclarecer de que modo tudo está relacionado.
P.S.: No que diz respeito ao coelho branco, o melhor é talvez compará-lo com o conjunto do universo. Nós, que vivemos aqui, somos parasitas minúsculos que vivem na pele do coelho. Mas os filósofos procuram subir pelos pêlos finos, de modo a poderem fixar nos olhos o grande ilusionista.
Estás a seguir-me, Sofia? Receberás a continuação.”
Para nos familiarizarmos com a história da filosofia nem sempre precisamos recorrer a livros velhos e empoeirados, "mais pra lá do que pra cá", como vovó já dizia. Escolha um filósofo e manda ver nesse combate de ideias:
Chegamos,
finalmente, ao último filósofo pré-socrático que veremos. Parmênides nasceu,
também por volta do século VI a.C., em Eléia, região atualmente localizada na
Itália. Para ele, o princípio das coisas, a arché, é o SER, aquilo que é e não pode não ser. Em seu
conhecido poema Sobre a natureza,
Parmênides distingue duas vias: a Via da
Verdade (alethéia) e a Via da Opinião (dóxa):
“Pois
bem, eu te direi, e tu recebe a palavra que ouviste,
as únicas
vias de pesquisa que são a pensar:
a
primeira, que é e que portanto não é não ser,
de
Persuasão é a via (pois à verdade acompanha);
a outra,
que não é e portanto que é preciso não ser,
esta
então, eu te digo, é atalho de todo incrível;
pois nem
conhecerias o que não é (pois não é exequível),
nem o
dirias...”
A
Via da Verdade é o caminho para o
ser, para aquilo que é tal como é, aquilo que, pelo princípio de identidade, é uma coisa e não pode ser outra ao mesmo
tempo. Por exemplo, uma mesa é sempre e unicamente uma mesa, não pode ser ao
mesmo tempo mesa e cadeira. E assim o ser: se o ser é, o seu contrário, pelo princípio de não-contradição, o não
ser, não é. Outro exemplo: se você que está lendo este blog existe, se todos
sabemos e concordamos que você existe, então você não pode não existir. Certo?
Ou você não existe? No primeiro exemplo, está em jogo a identidade de cada
coisa: se uma coisa é X, ela não pode ser Y; no segundo exemplo, está em jogo a
contradição: seria contraditório dizer que X existe e não existe ao mesmo
tempo. Aquilo que pode ser pensado e dito é aquilo que é, o ser; o seu contrário,
o não ser, não pode ser nem dito nem pensado. Em outros termos, apenas o ser
existe: princípio de todas as coisas, imóvel e imutável, eterno e
indestrutível, uno, pois não há nada que não seja o ser:
“Só
ainda o mito de uma via
resta
[Via da Verdade], que é; e sobre esta indícios existem,
bem
muitos, de que ingênito sendo é também imperecível,
pois
é todo inteiro, inabalável e sem fim;
nem
jamais era nem será, pois é agora todo junto,
uno,
contínuo...”
Pensar o ser e dizê-lo tal como é consiste em trilhar a Via da Verdade, em conhecer a realidade
do ser, do mundo e das coisas tais como são, evitando a Via da Opinião, mutável, instável, que emite afirmativas sobre as
coisas com base em sua aparência, ou seja, com base no modo como a coisa
aparece em dado momento (e em cada momento uma coisa pode aparecer de
determinado modo) e dependendo do estado físico e psicológico do observador no
momento em que opina, estado também muito variável. Para Parmênides, a mesma
coisa não pode ser uma de manhã e outra à tarde, ser uma coisa para uma pessoa
e outra para a outra, pois aquilo que é é uno, invariável, e quando as opiniões
divergem dizem respeito apenas à aparência
da coisa, não do ser real e verdadeiro do que existe, de sua essência.
E também Parmênides não pode ficar sem a sua música, "O Que", do Titãs:
No início deste 3º Bimestre, conhecemos o
pré-socrático Heráclito. Ele nasceu em Éfeso, uma cidade da Jônia, hoje situada
na Turquia, por volta do século VI a.C. Heráclito afirmava nunca ter tido
nenhum mestre e escreveu a sua filosofia em fragmentos tão concisos que ficou
conhecido como Heráclito, o Obscuro! Heráclito acreditava que a unidade do
ser está justamente em sua multiplicidade, pois "tudo é um". Segundo
ele, é possível captar a verdade pelos sinais enviados pelo Logos, ou seja, pelo pensamento e pela
palavra, não os nossos, mas uma razão e uma linguagem cósmicas ou universais (“Não de mim, mas do logos tendo ouvido é
sábio afirmar: tudo é um”). O princípio do mundo é este logos, identificado por Heráclito com o fogo, fogo primordial que atua como
princípio de mudança das coisas. Sim, para Heráclito, tudo está em mudança,
em devir, um devir orientado por
leis que mostram que toda mudança é a passagem de um estado a seu contrário.
Tudo muda o tempo todo, nada permanece idêntico a si mesmo, o mundo é um
perpétuo nascer e morrer (“Nos mesmos
rios entramos e não entramos, somos e não somos”). Há uma luta (ágon) constante travada pelos contrários, pelos pares de coisas
opostas que lutam em constante devir: o que era frio torna-se quente, voltando
a ser frio para depois tornar-se quente novamente, num perpétuo devir. Os
contrários são inseparáveis, dependem um do outro para seu surgimento, de modo
que há uma unidade na multiplicidade: a multiplicidade tensa e em luta é aquilo
que une e que é comum a todas as coisas (“O
combate é de todas as coisas pai, de todas rei...”).
Um professor que tive dava uma dica para não confundirmos Heráclito com outros filósofos pré-socráticos: como vimos acima, tudo flui, o DEVIR nunca cessa, "nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia, tudo passa, tudo sempre passará...". Música de Lulu Santos, "Como uma onda":
[Detalhe: quem não gostar dos clipes, não me culpe por eles. É o que se encontra no Youtube.]
Ao
fim do bimestre anterior, vocês conheceram um pouco sobre o início da filosofia
na Grécia Antiga. Este início, denominado como período pré-socrático, se estende do fim do século VII a.C. ao fim
do século V a.C., e se caracteriza pela preocupação da filosofia com a
origem do mundo e as causas das transformações da natureza. Dentre as
principais características do período pré-socrático destacam-se:
- Explicação
racional e sistemática sobre a origem, ordem e transformação da natureza,
explicando, consequentemente, a origem e as mudanças dos seres vivos;
- Busca por um
princípio natural, eterno, imperecível e imortal, gerador de todos os seres.
Todas as coisas existentes são geradas por um princípio natural e a esse
princípio tudo retorna (physis).
- Os seres
originados por esse princípio natural (physis)
são variados e diferentes, mortais, ao contrário de seu princípio originário
que é uno e eterno.
- Os seres naturais são mutáveis, estão em contínua transformação. O
movimento das coisas e do mundo chama-se devir.
Como temos pouquíssimo tempo de aula por semana, resolvi criar esse blog para postar textos referentes aos nossos estudos de filosofia. Se funcionar, o resultado é que teremos menos coisas para copiar e mais tempo para conversar/filosofar. Se não funcionar, o jeito será voltar para a caverna e simplesmente decorar tudo quanto é matéria! Lembrem-se que para dar certo o blog depende muito mais de vocês do que de mim; conto com todos.
Além de textos referentes às aulas, outros textos hão de aparecer: filosofia, indicações de livros de literatura, músicas e filmes irão dar as caras por aqui.
REGRA BÁSICA: respeitemo-nos uns aos outros, respeitemos os comentários e opiniões de nossos colegas. É preciso saber ouvir ler e procurar compreender as motivações de cada um.