“Pois bem!, a meu ver, a democracia
aparece quando os pobres, tendo conquistado a vitória sobre os ricos, chacinam
uns, banem outros e partilham igualmente, com os que sobram, o governo e os
cargos públicos; e frequentemente estes cargos são sorteados. [...]
Em primeiro lugar, não é verdade que
eles são livres, que a cidade transborda de liberdade e de franqueza de
palavra, havendo nela licença para fazer o que se quer? [...]
Ora, é claro que toda parte onde reina
tal licença cada qual organiza a vida do modo que lhe apraz. [...]
Assim é possível que ele [o governo
democrático] seja o mais belo de todos. Qual uma vestimenta variada que oferece
todo tipo de cores, este governo, ao oferecer toda variedade de caracteres,
poderá afigurar-se de rematada beleza. E talvez muitas pessoas, semelhantes às
crianças e às mulheres que admiram as variações, decidirão que é o mais belo.
[...]
É, como vês, um governo agradável,
anárquico e variado, que confere uma espécie de igualdade tanto ao que é
desigual como ao que é igual. [...]
Ora, não será o desejo insaciável deste
bem [a liberdade] e a indiferença por tudo o mais, que muda este governo e o
compele a recorrer à tirania? [...]
Então, se os que a governam não se
mostram totalmente dóceis e não lhe servem larga medida de liberdade, ela os
castiga, acusando-os de criminosos e oligarcas. [...]
Ora, vês o resultado de todos esses
abusos acumulados? Concebes, efetivamente, que tornam a alma dos cidadãos de
tal modo assustadiça que, à menor aparência de coação, estes se indignam e se
revoltam? E chegam por fim, bem sabes, a não mais se preocupar com leis
escritas ou não-escritas, a fim de não ter absolutamente nenhum senhor. [...]
Pois então! este governo tão belo e tão
juvenil é que dá nascimento à tirania, pelo menos no meu pensar.”
PLATÃO. A República. 2ª Ed. São Paulo: Difel, 1973, pp. 162 – 172 apud ARANHA, M. L.; MARTINS, M. H. Filosofando: introdução à filosofia. 3ª ed. rev. São Paulo: Moderna, 2003, p. 226.